sobre música e outras artes

textos de Afonso Miranda


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TRADIÇÃO

(sobre António Pinho vargas e Nuno Côrte-Real)


A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente,

a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável.

Baudelaire


Tradição. O conceito é esquivo, problemático e resiste a uma definição unívoca.

Refere-se, grosso modo, a um corpus de obras do passado que partilham um conjunto de procedimentos e de regras comuns, e uma mesma ideia de obra de arte musical. Neste sentido é um saber que se transmite de geração em geração, sob o qual está implícito uma linearidade histórica, uma genealogia. E deste modo, o conceito de tradição aparece como o oposto de ruptura. Na verdade a evolução dos estilos musicais sempre se fez em diálogo com a tradição, através de um complexo sistema de transformação de influências em que cada artista retoma a tradição e simultaneamente, através da sua individualidade e das questões que o presente lhe coloca, instaura uma tradição. O exemplo de Bach é paradigmático. Apesar de, nos cem anos que se seguiram à sua morte, só ser conhecido por um pequeno círculo de músicos, o seu estilo foi retomado em todas as épocas, actualizado às mais diversas realidades sonoras. De Mozart e Beethoven, passando por Wagner até Bartók, é possível percorrer essa complexa genealogia formada por sedimentação de influências. No início do século XX, com o movimento modernista deu-se uma fragmentação da realidade musical numa pluralidade inaudita de estilos individuais, com a abertura a novos materiais como resposta à crise de um dos valores mais altos da tradição: o sistema tonal. A partir daqui começou a ter mais sentido falar de tradições no plural. Todavia, apesar da relação de tensão que manteve com a tradição, o modernismo não instaurou a ruptura, antes propôs novos valores artísticos que permitiram mudar o rumo da história. A verdadeira ruptura surgiu após a segunda guerra, com as estéticas radicais ligadas à escola de Darmstadt que, suspendendo a história procuram reconstruir a prática musical no seu todo através da invenção duma nova linguagem completamente desenraizada do passado. A experimentação e a busca pelo novo foram tão obsessivas que acabaram por destruir o próprio sentido da obra de arte musical. A herança do passado e a tradição, na sua pluralidade, tornaram-se interditos. A vanguarda, paradoxalmente institucionalizada, baseada nos seus princípios totalitários e utópicos criou a sua própria tradição excluindo todas as outras que saíssem dos limites estreitos da sua visão histórica.

António Pinho Vargas (1951-) e Nuno Corte-Real (1971-) são, no panorama actual português, dois dos mais notáveis representantes de uma facção que, à margem da música «oficial» representada pelo academismo de vanguarda, soube criar um espaço alternativo marcado pela abertura e pela liberdade dos processos composicionais. Pinho Vargas foi a figura principal a encarnar a luta contra o dogma e tirania dos pressupostos estéticos herdados de Darmstadt. Uma profunda inquietação artística e intelectual levou-o a proceder a uma revisão crítica da história da música do século XX, através de uma desconstrução que logrou desmitificar os pressupostos das vanguardas pós-seriais e a sua visão parcial da história. Tornou-se um símbolo de abertura para muitos compositores da nova geração, não só como compositor, mas também enquanto professor. Entre os seus alunos esteve Corte-Real, que recebeu a sua influência não tanto num sentido estritamente estético-musical, mas sobretudo como um exemplo a seguir, pela coragem e persistência na afirmação de uma música sem restrições, em relação aberta com o passado, música essa que em Portugal, segundo a visão fundamentalista dos poderes instituídos, era entendida como marginal.

Apesar da sua música ser necessariamente diferente, os dois compositores têm em comum um conjunto de convicções que revelam um mesmo sentido de abertura em relação à tradição e, como tal, um afastamento relativamente às poéticas de vanguarda. Compõem sem um sistema pré-definido, aceitando a força irracional que está implícita no acto poiético, sem a qual a dimensão transcendente da obra não pode existir. A eficácia da obra é avaliada em termos perceptivos, isto é, pela escuta e não pela análise ou por uma qualquer declaração de intenções. Recusam qualquer tipo de interdições e não excluem a priori nenhum tipo de material musical porque o que importa é o tipo de organização a que ele será sujeito, o tipo de expressividade e o discurso que o compositor procura. Cultivam um estilo impuro que, através de uma teia de contaminações retoma e actualiza o que de perene há na arte musical e simultaneamente lhes permite o ser si próprio. Procuram uma autenticidade da vivência musical, acreditando no poder do belo e na transcendência da obra. O que está em causa não é um regresso ao passado, mas a aceitação da história na sua pluralidade e diversidade, na qual todas as genealogias são legítimas. A História está sempre em aberto.

O problema da tradição pôs-se a Johannes Brahms (1833-1897) de um modo muito particular. A herança de Beethoven pairava sobre os românticos como algo de exemplar, acabado, inultrapassável. A forma sonata, estrutura sobre a qual assentavam quase todos os géneros da tradição clássica, tinha sido elevada a uma tal perfeição que a geração romântica se viu forçada a enveredar por outros caminhos. As poucas tentativas de composição de uma sonata ou de uma sinfonia são para esta geração um árduo desafio a que o compositor se propõe para dar continuidade ao legado de Beethoven. Começam a predominar as pequenas formas e, no género sinfónico, desenvolve-se o conceito de música programática, que para se estruturar recorre a um suporte literário, e já não às formas consagradas pela tradição clássica. É neste contexto que Brahms surge contra-corrente. Acusado muitas vezes de anti-progressista, académico ou reaccionário, foi involuntariamente arrastado para uma polémica que, na segunda metade do século XIX, dividiu o panorama musical em dois partidos. De um lado os defensores da música do futuro, encabeçados por Liszt e por Wagner adeptos da fusão das artes, da obra de arte total, da música programática, e de todas as consequências que se desprendiam destes princípios progressistas ao nível da forma e da linguagem musical. Do outro lado os partidários da música absoluta entre os quais Brahms e Hanslick, o teórico do formalismo musical, que propunham novamente a ideia de uma música pura nas formas consagradas pela tradição clássica. Assim, retomando os esquemas antigos, sobretudo a forma sonata, Brahms soube adaptá-la ás inovações do período romântico, conseguindo alcançar uma notável síntese entre o racional e o poético.

Afonso Miranda


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ROCK - HOMENAGEM A LIGETI

A segunda metade do século XX foi, para a música, meio século que tardou em acabar. Não, certamente, meio século para nada, mas, como escrevia o filósofo francês Comte-sponville, “um meio século a mais, como uma gaguez da história, como uma farsa fatigante”. Foram cinquenta anos subsidiados para a extinção da emoção estética, para a erradicação do prazer. Reduzida a obra à ideia, a beleza tornou-se marginal. Mas, com cinquenta anos de repetição, o gesto de subversão e a busca do novo banalizaram-se. Esgotadas as vanguardas, o totalitarismo deu, finalmente, lugar à diversidade.

Hoje, em Portugal, a existência dessa diversidade característica do pós-modernismo, deve-se, por um lado, à criação de novas orquestras vocacionadas para a música contemporânea (como a Orquestrutópica ou o Remix ensemble), à existência de novas salas de concerto e festivais com políticas de programação menos conservadoras, mas, sobretudo, graças à coragem e persistência de compositores, como António Pinho Vargas, que lutaram pela liberdade dos processos criativos e abriram um espaço alternativo à margem dessa vanguarda paradoxalmente institucionalizada. Desta nova geração de compositores nascida na viragem do século, Nuno Côrte-Real é um dos mais notáveis e prolíficos exemplos.

Rock – homenagem a Ligeti, estreado em 2004, não é propriamente uma peça no estilo de Ligeti, apesar de conter alguns gestos herdados do compositor. É antes, uma celebração festiva desse compositor que foi na segunda metade do século XX um notável exemplo de independência face ao sistema. Não isento de alguma ironia, o nome da peça contrasta pela ligeireza com o peso e gravidade habitualmente atribuídos à música contemporânea.

Em toda a sua obra, Côrte-Real propõe-se restituir à música a sua natureza sensível: a obra como lugar de comunicação e emoção. Para si, a essência da música, a sua verdade é a poesia, isto é, aquilo que está para lá da técnica e que não se pode aprender; o que se desprende da escrita, sobrevoa a peça, mas não se deixa dizer por palavras. Daqui se compreende a renúncia do compositor em falar da própria obra. Penso que, oferecer a obra em silêncio é reconhecer que a força do acto criador não pode ser nomeada, e que permanecerá sempre um mistério. A obra diz-se a si própria, e o que ela diz está radicalmente entretecido no seu apresentar-se, no seu manifestar-se, no seu revelar-se. Como tal não pode compreender-se de outro modo. Sendo essencialmente de natureza expressiva, o sentido da obra não é susceptível de ser transmitido verbalmente. Reclama sim, ser vivida. Heidegger falou de epifania, “fazer ver a partir de si mesmo”, desvelamento – “a obra de arte é uma dádiva de lugares nos quais Deus aparece”. O discurso sobra a obra nunca a torna presente. Quando pediram a Schumann que explicasse uma peça, ele sentou-se e tocou-a pela segunda vez. A linguagem tropeça quando fala de música. Habitualmente refugia-se no pathos da imagem, ou então, esgota-se em explicações técnicas ou interessantes análises, mas que em nada contribuem para tornar presente a “coisa mesma”. A música é inefável. Termino parafraseando T. de Pascoaes: “Quando tudo é música, o que somos nós senão ouvidos?”

Afonso Miranda


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Breve Ensaio sobre a música de Nuno Côrte-Real

Não fala, nem escreve sobre a sua música. No entanto, as obras dizem-no, se compreendermos o estilo não só como técnica, mas como visão do mundo, espiritualidade. O estilo desvela a singularidade do seu modo de ser – compositor. Por outro lado, esse silêncio pode também ser revelador, numa época em que, por vezes, os compositores são mais conhecidos pelo que dizem do que pela música que fazem.

Até muito recentemente todas as suas partituras eram manuscritas, com aquele rigor paciente de artesão, a disciplina manual dos ofícios perenes. Este saber – fazer manual que os Gregos antigos chamavam Téchne, e do qual nasceu a palavra arte. Caligrafia clara, cuidada e precisa, tal como a música. Hieróglifos de um saber ancestral e enigmático. Mas, enfim, a rendição ao computador tornou-se inevitável, sobretudo pela tarefa morosa de copiar todas as partes instrumentais. Mas a música não mudou. Continua ligada a esse gesto da mão que completa o movimento interior do som, tornando-o exterior no instante inapreensível da criação. Música que se escreve com o corpo e nele se inscreve, convocando-o na escuta.

Tem sido muito interessante seguir o percurso de Nuno Corte-Real, um dos mais notáveis compositores da nova geração. Vejo na sua música uma interrogação sempre retomada em cada obra: “O que é para mim a música?”. Vejo também uma nostalgia, um desejo de voltar a casa. E penso, quão ilusória e inútil é, afinal, toda a nossa subtileza técnica, especulativa e criadora se antes a não suporta e anima este abraço recebido no intimo de nós mesmos. Nostalgia. Exercício de verdade interior, de liberdade. A sua música surge assim como uma necessidade de preencher o sentimento de uma falta, de uma ausência, pela reinvenção de um ofício quase perdido, que se quer de vocação, e que por um deslize de sentido se tornou pro-vocação.

Assim, retomando o caminho esquecido da grande tradição, a obra de Nuno Corte-Real abriu um espaço de possibilidades. E isto é mais notório se pensarmos na nossa época dominada, em geral por uma falta de orientação, sintomática da crise que se abateu sobra a criação musical após os excessos das vanguardas. E, apesar da saudável diversidade recém conquistada, prevalece na nossa época uma certa tendência para o impessoal, em que “cada um é o outro e nenhum é si-próprio”, em que se permanece preso acertos princípios e restrições tidos por absolutos, e em que uma certa visão da História submete o artista, privando-o da liberdade criadora elementar.

Ora, pelo contrário, a História não deve representar para o artista um fardo esmagador que arrasta ao longo dos dias, mas como algo recebido incompleto, algo em aberto que lhe é dado a prosseguir. E portanto, não há soluções definitivas, não há critérios pré-constituídos. Há sim criação de possibilidades, relançamento de possíveis que eram impossíveis, e que sem essa criação permaneceriam inconcebíveis. A obra cria, ao mesmo tempo que a sua realidade, a sua possibilidade, e não há arte nem critério da arte fora desse alargamento do possível.

Assim, liberta de paradigmas e de pressupostos estéticos, a sua obra restitui à musica a sua natureza sensível, instaurando um lugar de comunicação e emoção. A obra como fenómeno de ressonância na interioridade do ouvinte. A partir da segunda metade do século XX os aspectos construtivos e lógicos são valorizados em detrimento da audição. De certa maneira a análise substitui a escuta, o pensamento substitui o dado sensível. Ninguém se interessa pelo que as obras são (auditivamente), mas pelo que elas representam, pelo seu papel num processo histórico em progresso que se crê absoluto. A emissão de som triunfa sobre a escuta. Adquirimos uma notável mestria na produção e organização do som, mas não sabemos como recebê-lo. A arte tornou-se coisa de elites. Corte-Real tenta inverter esta tendência criando uma música que ensina a escuta, uma música correlato da escuta. Uma música que não precisa de palavras que a expliquem, porque o seu criador só tem uma maneira de reflectir sobra a criação: criar. Quando a obra é clara o pensamento abafa-a.

Convicto de que toda a interdição é uma violência, a sua música assume uma relação aberta com o passado, criando um feixe de contaminações que são assimiladas e incorporadas no seu próprio estilo, o qual resulta assim não de imposições estéticas, mas da sua própria visão e vivência da música. Aqui sobressai a sua concepção do modernismo como abertura para um múltiplo, em que vários estilos diferentes podem coexistir.

Afonso Miranda


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O Rapaz de Bronze

Ópera em um ato de Nuno Côrte-Real

Retomando o caminho esquecido da grande tradição, a obra de Nuno Côrte-Real abriu um espaço de possibilidades. Isto é mais notório se pensarmos na nossa época, dominada, em geral, por uma falta de orientação sintomática da crise que se abateu sobre a criação musical após os excessos das vanguardas. Apesar da saudável diversidade recém conquistada no domínio da composição, prevalece na nossa época uma certa tendência para os estilos impessoais, em que “cada um é o outro e nenhum é si-próprio”, em que se permanece preso a certos princípios e restrições tidos por absolutos, e em que uma determinada visão da Historia submete o artista; privando-o, por vezes, da liberdade criadora elementar.

Ora, pelo contrário, a História não deve representar para o artista um fardo esmagador que arrasta ao longo dos dias, mas como algo recebido incompleto, algo em aberto que lhe é dado a prosseguir. E portanto, não há soluções definitivas, não há critérios pré-constituidos. Há sim criação de possibilidades, relançamento de possíveis que eram impossíveis, e que sem essa criação permaneceriam inconcebíveis. A obra cria, ao mesmo tempo que a sua realidade, a sua possibilidade, e não há critério da arte fora desse alargamento do possível.

Assim, liberta de paradigmas e de pressupostos estéticos, a obra de Nuno Côrte-Real restitui à música a sua natureza sensível, instaurando um lugar de comunicação e emoção. A obra como fenómeno de ressonância na interioridade do ouvinte. A partir da segunda metade do século XX os aspectos construtivos e conceptuais são valorizados em detrimento da audição. De certa maneira, a análise substitui a escuta, o pensamento substitui a percepção. A emissão do som triunfa sobre a escuta. Adquirimos uma notável mestria na produção e organização do som, mas não sabemos como recebê-lo. A arte tornou-se coisa de elites. Côrte-Real tenta inverter esta tendência criando uma música que ensina a escuta, uma música correlato da escuta, da qual não podem estar ausentes os seus princípios humanos fundamentais: o canto (a melodia) e o ritmo. A sua música, enquanto organização do tempo, procura, assim, um sentido narrativo, no qual a relação dialéctica entre consonância e dissonância tende a privilegiar a primeira, enquanto a segunda toma uma função expressiva ou de caracterização dramática. Uma música unicamente dissonante seria como um mundo a preto e branco. Deste modo, assumindo uma relação aberta com o passado, a sua música cria um feixe de contaminações que são assimiladas e incorporadas no seu estilo, revelando uma atitude perante as inovações técnicas e estilísticas, encaradas como alargamento de possibilidades expressivas, e não como liquidação de valores declarados prescritos. Sobressai daqui uma concepção do modernismo como abertura para o múltiplo, em que vários estilos diferentes podem coexistir, legitimados unicamente pela coerência e pela intenção expressiva da obra.

Estes aspectos são bem evidentes na ópera O Rapaz de Bronze. Partindo de uma total submissão ao texto, o compositor serve-se de várias técnicas não com uma função estética, mas como forma de caracterização dramática e psicológica. A música funciona, assim, não só como reforço da palavra, uma espécie de ressonância do texto, como procura exprimir além da palavra. Elementos musicais recorrentes, sejam tímbricos, melódicos, rítmicos ou harmónicos, que aparecem associados aos personagens principais, asseguram, além duma engenhosa caracterização, a unidade dramática e formal da peça.

Afonso Miranda


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A HERANÇA AMERICANA

(sobre Copland, Barber e Porter, e passando por Carrapatoso)

Dum ponto de vista musical, o século XX norte-americano é, em geral, marcado pela busca e afirmação de uma linguagem musical genuinamente americana. Até aqui os EUA não tinham uma tradição musical própria. Por um lado, as suas músicas populares não tinham um âmbito verdadeiramente nacional, sendo antes o reflexo da diversidade étnica, racial e cultural duma população constituída maioritariamente por imigrantes. Por outro lado, a atividade criativa e concertística era largamente determinada pela veneração do sinfonismo europeu e pela importação desses reportórios.

A explosão do jazz ocorrida nos anos vinte, com a sua ampla difusão e impacto por todo o território americano, constituiu um acontecimento decisivo para a transformação da realidade musical americana. O jazz assumiu espontaneamente uma dimensão nacional e tornou-se rapidamente num importante traço identitário da cultura musical norte-americana, conquistando o estatuto de música popular genuinamente americana. A existência desta identidade, encarnada pelo jazz, viria despertar a consciência nacionalista dos compositores eruditos, que procuraram nele inspiração para a formação uma tradição musical americana, uma tradição que assentasse num modo de expressão próprio, tipicamente americano, mas que, simultaneamente, tivesse um impacto e um reconhecimento internacionais.

Aaron Copland (1900-1990) foi o compositor mais influente da sua geração e um representante maior desse movimento de afirmação da música americana, procurando fazer uma réplica americana daquilo que Stravinski tinha feito com a música russa. A partir duma sólida formação na tradição europeia, desenvolveu um estilo contaminado de jazz e idiomas populares americanos. O Concerto para clarinete e orquestra, escrito em 1948 para o clarinetista de jazz Benny Goodman, representa um claro exemplo desta tendência. A obra tem uma forma pouco usual, dois andamentos ligados por uma cadência virtuosística. O primeiro andamento, num tempo lento e expressivo, é uma canção de embalar dominada por um lirismo amargo. A cadência dá largas ao virtuosismo e simultaneamente vai introduzindo os temas de jazz latino-americanos que constituem o segundo andamento. Este é constituído por uma série de variações rítmicas, sobre figuras sincopadas tipicamente jazzísticas.

Com uma disseminação espontânea, facilitada pelos novos meios de comunicação como a rádio ou o cinema, o jazz rapidamente de desdobrará numa multiplicidade de formas musicais, que não deixarão de florescer ao longo de todo o século XX. A sua influência será transversal e afetará todos os géneros populares. Também o mundo da canção e do teatro musical da Broadway, do qual Cole Porter (1891-1964) é um dos mais notáveis representantes, se revitaliza a partir dos anos 20 ao apropriar-se dos ritmos sincopados e das fórmulas expressivas típicas do jazz. Porter foi um dos compositores de canções do século XX mais bem formado musicalmente, apesar de ser mais reconhecido enquanto letrista. Os seus textos tornaram-se uma referência, raramente sentimentais, cheios de duplos sentidos e rimas irónicas, direto em relação a temas tabus. As suas primeiras canções eram chocantes para o teatro da época, e daí os seus fracassos iniciais. Após décadas de insucesso Porter continuava a escrever canções, brotavam espontaneamente. Em 1948 produziu a sua obra-prima, Kiss me, Kate, um musical cujas canções alcançariam uma grande popularidade. No contexto da música popular americana, as suas canções são provavelmente as mais refinadas e teatrais, sofisticadas, e musicalmente mais complexas.

Ao contrário da maioria dos seus contemporâneos, Samuel Barber (1910-1981) não se deixou tentar nem pelo jazz, nem pelas tendências modernistas emergentes no primeiro quartel do século XX. Pelo contrário, a sua música inscreve-se numa expressividade e lirismo tipicamente românticos, apoiando-se na linguagem tonal e nos seus modelos formais convencionais. Apesar de partilhar com os compositores americanos da sua geração a preocupação em escrever música acessível a uma vasta audiência, Barber, ao contrário de Copland que perseguia a ideia de uma identidade musical nacional, raramente incorporou materiais populares ou jazz nas suas composições. Todavia, a simplicidade e franqueza da sua música podem ser vistas como qualidades americanas, qualidades que estão bem presentes na música americana da primeira metade do século, independentemente das tendências estilísticas. O Adagio para cordas resulta de um arranjo que Barber fez do segundo andamento do seu Quarteto de cordas n.º1, op.11, composto em 1936. A versão para cordas seria estreada em 1938 numa transmissão radiofónica com Toscanini dirigindo a NBC Symphony Orquestra. Com uma forma de arco a peça é dominada por um lirismo elegíaco. Uma longa melodia flutuante, extática, vai sendo variada numa lenta busca sempre insatisfeita que culmina num clímax fortíssimo, e num súbito silêncio. Com o seu lirismo melancólico a peça ganhou uma imensa popularidade, e nos EUA adquiriu mesmo o estatuto de lamento fúnebre patriótico, tendo sido tocada em cerimónias fúnebres de personalidades como Albert Einstein e John Kennedy, ou em acontecimentos trágicos como o 11 de setembro.

Eurico Carrapatoso (n.1962) representa no universo musical português essa busca pela identidade lusa, levada a cabo através de uma síntese entre as formas eruditas e o recurso ao património musical popular. As suas origens transmontanas constituem um traço marcante na sua identidade pessoal e musical. A música popular frequentemente revisitada pelo compositor funciona como um exercício necessário de purificação da alma, um gesto involuntário de regresso às origens, um grito de nostalgia perante uma identidade em extinção. A sua vasta obra coral, com fortes implicações populares, constitui, neste campo, um património insubstituível para a compreensão da identidade musical portuguesa. Espelho da alma, estreada em 2009 pelo Ensemble Darcos, é uma obra constituída por sete peças baseadas em melodias populares portuguesas, maioritariamente transmontanas e açorianas, às quais o compositor confere uma construção em arco ou em espelho.

Afonso Miranda



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MÚSICA POPULAR VS. MÚSICA ERUDITA
(a propósito da música de Carrapatoso e Côrte-Real)

Desde sempre que os compositores se sentiram atraídos pela música popular, e foram beber à sua fonte, procurando nela saciar uma imensa nostalgia pela terra, pelo povo ou pela imagem idílica de uma idade dourada para sempre perdida. Para muitos a cultura popular traz em si um sentido ancestral, uma verdade primitiva, e escutá-la é como um regressar à voz maternal, ou a uma inocência perdida. Alguns procuraram nela a crua simplicidade, a genuinidade, a depuração de tudo o que não é essencial. Outros viram nela a sua identidade, o reflexo da sua alma, e nela escutaram a voz da fraternidade. Outros ainda projetaram com ela a sua fuga para terras exóticas e virgens, encontrando nos sons remotos a mesma presença humana, e uma riqueza musical de que a Europa não suspeitava. Podemos dizer que o fascínio provocado pela música popular levou à sua assimilação pelas formas eruditas e a influência dessas interseções acabou por ser um dos fatores determinantes para a evolução da música ocidental. Se, num determinado registo, é frequente ouvirmos a fórmula dicotómica que contrapõe a música tradicional ou popular à música erudita ou culta, é porque a primeira se refere a um conjunto de reportórios de tradição oral pertencentes à memória coletiva de um povo, enquanto a música erudita pressupõe a escrita como processo de criação individual e transmissão. Mas isto, não significa incompatibilidade ou oposição. Ambas evoluíram através do contato recíproco.

É sobretudo no século XIX, com a afirmação crescente das identidades nacionais, que se desenvolve o interesse pelas culturas populares. Acreditava-se que a cultura popular, bem como a língua, refletia a identidade e a alma dos povos. Nos países limítrofes da Europa inicia-se o movimento dos nacionalismos musicais, que procuram encontrar nas raízes da música popular uma forma de afirmação contra a supremacia da música alemã. Do cruzamento entre música popular e erudita o carácter da linguagem musical, que até aqui era homogéneo e universal, começa a fragmentar-se em dialetos nacionais. O caraterístico, o pitoresco e o exótico contaminam e refrescam as formas da tradição clássica vienense contribuindo para a sua renovação. Pense-se, por exemplo, em Chopin e na nostalgia polaca das suas Mazurkas, ou na música cigana de Lizst, ou nos Landler de Mahler e na música de feira que irrompe das suas sinfonias como memórias de infância irreprimíveis. Este movimento é levado mais longe no século XX quando o fascínio pela música popular, tornando-se mais pragmático e sistemático, ultrapassa os limites estreitos do nacionalismo. Os compositores procuram nas músicas primitivas e exóticas soluções para os problemas estéticos do seu tempo. Com o modernismo a arte derruba fronteiras políticas e geográficas, e torna-se global. O impacto que as músicas do Extremo Oriente tiveram em Debussy acabaria por transformar o curso da música europeia. Ou Bartók que a partir do estudo sistemático da música rústica de vários países forjou um dos estilos mais originais do modernismo. Ravel, Stravinsky… os exemplos multiplicam-se. Difícil seria encontrar um compositor da primeira metade do século XX cuja música não tenha ecos da música popular, seja rural ou urbana. Porque o modernismo é precisamente essa abertura ao plural e ao global, essa celebração explosiva da diversidade.
É neste contexto de pluralidade e abertura que se inscrevem Eurico Carrapatoso (n.1962) e Nuno Côrte-Real (n.1971) dois compositores da nova geração que melhor traduzem o afastamento das poéticas radicais e académicas das pós-vanguardas, e que assumem a música como um exercício de liberdade criativa e expressiva, que resulta da síntese de vários universos sonoros. Trata-se de reinventar a música dispondo de todo um vasto leque de materiais que a sua história nos legou. E à partida não há materiais mais ou menos legítimos, mais ou menos dignos. É o tipo de intenção, e de organização a que compositor sujeita o material em função da sua intenção expressiva que legitima e dignifica o material. Em ambos os compositores é possível verificar um interesse recorrente pela palavra e pela cultura portuguesa, bem como pela sua música tradicional, como é o caso das obras aqui apresentadas, inspiradas em melodias populares portuguesas. No entanto, deve-se salientar, que não se tratam de meras coleções de música tradicional. Os materiais tradicionais servem de ponto de partida, são como matéria-prima bruta, sujeita a um tratamento rigoroso através de técnicas e de uma construção formal típica da música erudita.

Carrapatoso representa um dos nomes mais importantes da criação atual em Portugal, um estatuto que se reveste de maior valor se pensarmos que foi conquistado por mérito próprio, fora dos círculos académicos e do partidarismo musical, graças à sageza e clareza da sua escrita, à subtileza da sua orquestração, e às qualidades poéticas e líricas da sua música que lograram conquistar o público. As suas origens transmontanas constituem um traço marcante na sua identidade pessoal e musical. A música popular frequentemente revisitada pelo compositor funciona como um exercício necessário de purificação da alma, um gesto involuntário de regresso às origens, um grito de nostalgia perante uma identidade em extinção. A sua vasta obra coral, com fortes implicações populares, constitui, neste campo, um património insubstituível para a compreensão da identidade musical portuguesa. Espelho da alma, a obra aqui em estreia absoluta, e Sete Epigramas a Francisco Lacerda, composta em 2000, são ambas constituídas por sete peças baseadas em melodias populares maioritariamente transmontanas e açorianas, às quais o compositor confere uma construção em arco ou em espelho.
Côrte-Real compôs o Novíssimo Cancioneiro, op.12, em 2001, num período de grande profusão criativa que coincide com o final da estadia do compositor na Holanda, após seis longos anos de estudo. Se num nível emocional a obra é ditada pela nostalgia, num nível mais técnico e musical é marcada por um desejo de rutura com os dogmas académicos e pela vontade de afirmação de uma linguagem musical livre. Constitui uma tomada de posição em favor de uma música organicamente humana, uma música cuja própria essência corporal assenta no canto e no ritmo. Construído a partir de melodias tradicionais portuguesas, o ciclo constituído por doze peças inclui também duas danças galegas, as Muiñeiras, e dois exercícios originais de inspiração popular, os Intermezzi instrumentais. A organização e construção formal do ciclo obedecem a princípios rigorosos. Cada uma das doze peças está escrita numa tonalidade diferente e dessa sequência o compositor faz derivar uma série melódica que vai gradualmente sendo introduzida ao longo do ciclo. A canção de embalar Nana nana, meu menino funciona como uma espécie de motivo condutor, sendo apresentado três vezes mas trabalhado de três maneiras distintas.

Afonso Miranda


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CONSIDERAÇÕES
(sobre Mozart, Schostakovich e Côrte-Real)

Um dos
acontecimentos determinantes da vida de W.A. Mozart (1756-1791) foi a sua “fuga” de Salzburgo para Viena onde, a partir de 1781, se estabelece sob a nova condição de profissional independente. Dessa década que Mozart viveu em Viena até à sua morte, a entrada para a maçonaria, no final do ano de 1784, constitui um acontecimento decisivo que terá repercussões ao nível da sua vida social e espiritual, mas também implicações diretas na sua obra. Apesar de acreditar, como iluminista que era, que a nobreza do espírito tinha mais valor que a nobreza de sangue, a sua adesão não tem a ver diretamente com quaisquer preocupações políticas, nem com pretensões de mudar a estrutura social. Movido por um genuíno ideal de fraternidade humana, de respeito mútuo, e pela crença num saber e numa felicidade superiores, Mozart procura a amizade e o espírito de entreajuda, quer do ponto de vista humano, quer do profissional uma vez na sua inédita situação de independência não podia contar com a proteção de um patrono, e por isso necessitava de apoios e boas relações.Nesse tempo a maçonaria apesar de ser uma sociedade fechada na qual só era possível entrar por convite, ainda não possuia o grau de secretismo e clandestinidade que mais tarde, devido às tentativas dos governos para a sua extinção, viria a possuir. Na Viena do tempo de Mozart a maçonaria era constituída por espíritos iluminados da nobreza e da alta burguesia, assim como intelectuais, cientistas e artistas famosos, tais como Haydn. Além do mais Mozart concilia de maneira singular os princípios maçónicos com a sua fé católica.

A viva imaginação de Mozart deixou-se fascinar pelo aparato simbólico e pelos rituais iniciáticos, levando-o a operar uma tradução musical da simbologia maçónica. Esta tendência encontra o seu ponto alto na Flauta mágica, uma ópera esotérica e iniciática de clara inspiração maçónica. Além da música composta propositadamente para cerimónias da sua Loja, como a Música fúnebre Maçónica K.477 ou a Cantata Maçónica, K.623, existe ainda um conjunto de obras de circunstância compostas para amigos maçons. É o caso do Quinteto para clarinete em lá maior, K.581, composto para Anton Stadler, exímio clarinetista, irmão da maçonaria e amigo próximo de Mozart, para quem comporá ainda o notável Concerto para Clarinete, K.621. O clarinete era nessa altura um instrumento recente, ainda não completamente assimilado na orquestra clássica, e as obras que Mozart lhe dedicou enquanto instrumento solista conferiram-lhe um estatuto de prestígio que acabaram por assegurar a sua inclusão definitiva na paleta orquestral clássica. Além disso, o clarinete tinha um papel de destaque na música associada aos ritos maçónicos, assumindo-se aí como símbolo da fraternidade. Outro sentido esotérico aparece ligado ao número três, que possui uma forte significação na simbologia maçónica. As obras com implicações maçónicas são sempre compostas numa tonalidade com três alterações na armação de clave, isto é, Mi bemol que tem três bemóis, ou Lá Maior que tem três sustenidos e é a tonalidade deste Quinteto. Nesta obra, como noutras de inspiração semelhante e em que entra o clarinete, domina a atmosfera serena e feliz da amizade e da fraternidade, e a doçura do calor humano, e mostra bem a necessidade que Mozart tinha de se sentir apoiado, de ter amigos fieis e leais, razão que com certeza também terá contribuído para a sua adesão à maçonaria. Apesar do apoio recebido, inclusive financeiro, este facto não o impediu de conhecer nos seus derradeiros anos de vida a crueza da solidão artística e humana que tanto temia.

A conturbada carreira de Dimitri Schostakovitch (1906-1975) reflete todos os paradoxos do compositor soviético colocado entre os imperativos estéticos do regime e os ditames do seu próprio génio criador. Sob a política de terror estalinista Schostakovitch ocupa essa posição ambígua de compositor oficial do regime mas, simultaneamente, de um homem marcado, frequentemente censurado e obrigado a retratar-se. Em 1936 era já o mais destacado compositor soviético quando, a propósito da sua ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsenk, sai no jornal oficial do partido, o Pravda, uma severa crítica atribuída ao próprio Estaline, intitulada “Caos em vez de música”, que condenava os excessos modernistas da obra. A partir daqui dá-se uma fragmentação da sua personalidade artística, que passa a oscilar entre a máscara oficial expressa na arte mais pública, as sinfonias, e a busca íntima nos domínios da música de câmara, donde sobressai um Schostakovich críptico e secreto, recolhido na sua própria interioridade e na redescoberta do processo criativo. Após a crítica do Pravda o Quarteto de cordas torna-se o seu meio de expressão favorito, um género que por estar mais afastado das grandes massas possibilitava ao compositor uma menor submissão às normas estéticas e propagandísticas do realismo socialista e uma maior liberdade. Os seus Quartetos tornam-se obras de reflexão filosófica e de intensa espiritualidade, onde o compositor se confronta com as suas próprias contradições. Assim, as opções estilísticas de Schostakovich, o seu intenso dramatismo, o humor corrosivo e a ironia, os seus lúgubres êxtases líricos ou a meditação continua sobre o tema da morte constituem o resultado dessa dupla natureza em confronto, a síntese dos estímulos exteriores com a sua própria busca interior. Esta dualidade entre os aspetos exteriores e interiores aparece bem diferenciada nos dois ciclos maiores da sua produção: as 15 Sinfonias e os 15 Quartetos. Se as Sinfonias constituem um grandioso ciclo épico que evocam os principais acontecimentos históricos da URSS, os Quartetos, enquanto veículos de uma expressão de natureza mais íntima e confessional, aparecem repletos de narrativas labirínticas e imagens de desolação, fugas bizarras e marchas fúnebres, funcionando como um antídoto em relação às suas obrigações como músico do regime. Podemos assim dizer que a música de câmara constitui o seu principal legado espiritual, pela autenticidade humana epela transcendente profundidade musical.

O Quarteto de Cordas nº11, em fá menor, Op.122, terminado em 1966, tem uma forma pouco habitual de sete andamentos que se encadeiam sem interrupção. É como um poema sem palavras em sete estrofes, dominado por uma pungente simplicidade melódica e polifónica, um carácter desolado e noturno que culmina na elegia fúnebre do penúltimo andamento.

Nuno Côrte-Real (n.1971) tem-se afirmado como um dos mais notáveis compositores portugueses da nova geração. A sua obra abriu um espaço próprio no panorama nacional, um espaço de independência conquistado pela afirmação convicta dos valores musicais perenes, da qual resulta um estilo em que a originalidade não está aquém da música, num qualquer sistema compositivo pronto a usar, mas se constrói pela precisão e pela intenção do gesto expressivo, que se atualiza na própria musica, no ato da audição. Sobrepondo o valor da escuta aos valores conceptuais a música reconquista a sua natureza sensível, instaurando-se como lugar de comunicação e emoção. Enquanto organização do tempo a sua obra procura um sentido narrativo, no qual a relação dialética entre consonância e dissonância tende a privilegiar a primeira, enquanto a segunda toma uma função expressiva ou de caracterização dramática. Um dos traços mais marcantes da obra de Côrte-Real tem sido o recurso frequente a poetas portugueses, e a abordagem de temas que problematizam as questões humanas em geral e que refletem o envolvimento espiritual do compositor com o mundo.

Pranto Op.17, composta em 2002, originalmente para dois clarinetes baixo, é uma peça de circunstância criada para o amigo clarinetista Fausto Corneo, numa altura em que, tal como o compositor, terminava o seu curso no Conservatório de Roterdão, onde a peça viria a ser estreada. É uma obra intuitiva, de imaginação, sem intenções construtivas, um lamento a duas vozes onde, de certo modo, está presente a ideia de um adeus. A simplicidade e versatilidade da escrita permitiram a adaptação a novas instrumentações para cordas, ganhando assim novas nuances expressivas.

Afonso Miranda



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Espírito de independência
(sobre Carrapatoso, Victorino D'Almeida e Côrte-Real)

António Victorino D’Almeida (n.1940), Eurico Carrapatoso (n.1962) e Nuno Côrte-Real(n.1971), apesar de representarem três gerações distintas no contexto da música contemporânea em Portugal, partilham, no entanto um traço inequivocamente comum: o espírito de independência. Afastam-se claramente das retóricas politizadas das vanguardas pós-seriais, recusam os seus dogmas, as suas interdições e os seus excessos, para assumirem abertamente as suas convicções artísticas assentes no princípio da liberdade criativa. E nessa condição de homens sós, assumem o risco de fazer a música que querem, a música em que acreditam, à margem das correntes institucionalizadas e das suas estafadas polémicas, reabilitando os valores perenes da música - a melodia, a harmonia e o ritmo - sem os quais a obra não pode assumir a sua plenitude comunicativa. Apesar da sua música ser necessariamente diferente, pode dizer-se que o estilo destes três compositores, assenta numa mesma relação de abertura em relação à história e ao passado, resultando num ecletismo que encontra na ideia de síntese a resposta para o beco sem saída a que os excessos vanguardistas conduziram a música. Trata-se de reinventar a música dispondo de todo um vasto leque de materiais que a sua história nos legou. E à partida não há materiais mais ou menos legítimos, mais ou menos dignos. É o tipo de intenção, e de organização a que compositor sujeita o material em função da sua intenção expressiva que legitima e dignifica o material. Assim não será estranho encontrar nestes compositores uma abertura a outros mundos sonoros e mesmo às músicas populares.

Victorino D’Almeida é uma figura singular na cultura portuguesa, apesar de ser pouco conhecido pela sua principal atividade, a composição, o que de certo modo confirma a pobreza da nossa vida musical. O seu extenso catálogo abarca praticamente todos os géneros, e revela esse ecletismo estilístico de assimilação e fusão de várias influências, sejam de origem erudita ou popular, e no qual se manifesta o gosto pelo paradoxo, a ironia e o humor. O seu cosmopolitismo musical está bem presente nos 2 Decatetos Op.138, o nº 1 aqui em estreia absoluta, e o nº 2 composto no curtíssimo espaço de uma semana em 2005. Apresentam uma estrutura rapsódica, uma sequência de colagens de diferentes universos sonoros que se sucedem e se sobrepõem, por vezes num ritmo frenético.

Eurico Carrapatoso representa um dos nomes mais importantes da criação atual em Portugal, um estatuto que se reveste de maior valor se pensarmos que foi conquistado por mérito próprio, fora dos círculos académicos e do partidarismo musical, graças à sageza e clareza da sua escrita, à subtileza da sua orquestração, e às qualidades poéticas e líricas da sua música que lograram conquistar o público.
Da loucura, do grotesco e da morte em Peer Gynt, Op.38, é uma suite resultante da música de cena composta para a peça de Ibsen, Peer Gynt, levada a cena no Teatro Aberto em 2001. Esta abordagem à peça de Ibsen constitui um desafio, uma vez que esta se encontra imortalizada pela música de Grieg, um risco que Carrapatoso supera graças à versatilidade da sua escrita e à sua técnica irrepreensível, conseguindo uma obra de grande beleza, na qual, apesar de se perceber a marca inequívoca do compositor português, permanece latente uma ligação subterrânea com o universo sonoro de Grieg.

Nuno Côrte-Real compôs o Concerto Vedras, Op.18, em 2001, num período de grande profusão criativa, período que coincide com o final da estadia na Holanda, após seis longos anos de estudo. As obras deste período traduzem uma libertação relativamente à rotina académica e ao estilo impessoal que aí prevalece, esse estilo em que cada um é o outro e nenhum é si-próprio, e evidencia a afirmação de uma independência criativa e a maturação de um estilo musical próprio. É, de certo modo, uma obra de nostalgia dedicada à cidade onde o compositor cresceu, perpassada por uma atmosfera claro-escuro. A euforia do primeiro andamento, como uma orgia rítmica stravinskiana, conduz ao andamento lento, melancólico, contemplativo, uma notável condução melódica numa textura polifónica que se vai adensando até ao clímax. Por fim o final sereno, vagamente nostálgico e absolutamente luminoso.

Afonso Miranda

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Genealogia do Lírico

(a propósito de Spohr, Bruch, Schubert, Côrte-Real e Rota)

O que significa a palavra lírico? O que queremos dizer quando afirmamos que um compositor é lírico? Desde logo fica por esclarecer se se trata de um adjetivo, de uma categoria estética ou de um conceito artístico. Indubitavelmente a palavra sugere uma pluralidade de sentidos que podem variar segundo os contextos, o tempo histórico a que se refere. Desde logo pode assumir uma aceção mais literal ou, pelo contrário, mais figurada. Se dizemos, por exemplo, que Rossini foi um compositor lírico, o sentido é literal uma vez que Rossini foi um compositor de ópera, sendo o lírico entendido aqui como a arte do bel canto. Mas se dizemos que Chopin é um compositor lírico o significado já não pode ser o mesmo, porque Chopin, como é sabido, só escreveu música para piano. Aqui lírico lê-se como um modo de expressão que privilegia a melodia como um veículo poético para a manifestação de sentimentos subjetivos. Por outro lado, pode-se dizer ainda que Wagner, que praticamente só compôs óperas, não é um compositor lírico. O lírico aparece aqui como o oposto de dramático, mas pode ler-se simultaneamente, como no exemplo de Chopin, como um sinónimo de melódico.
A palavra tem a sua origem etimológica na lira, o instrumento musical da antiguidade grega associado às figuras mitológicas de Apolo e Orfeu, e que servia para acompanhar um género de poesia cantada, que se caracterizava pela subjetividade e pela exposição emocional do eu: a poesia lírica. A partir da Poética de Aristóteles tornou-se comum a divisão da poesia em três modos distintos: a poesia épica, em que um narrador conta um história, a poesia dramática, que inclui todos os géneros teatrais, na qual são as personagens que falam, e a poesia lírica, na qual o poeta fala diretamente ao leitor ou ouvinte, representando diretamente a sua subjetividade. Note-se, de passagem, que esta divisão não impede a mistura dos vários modos numa mesma obra. Os sentidos que a palavra vai ganhando ao longo do tempo, com a sua expansão do território da poesia para o da música, mantêm uma ligação estreita às características definidoras da poesia lírica e ao imaginário mitológico de Orfeu, isto é, o canto e a exposição emocional do eu.
O elemento lírico irrompe na música como uma verdadeira revolução musical, por volta de 1600, com o advento da monodia, isto é, o canto solista com acompanhamento de acordes. E surge como uma tentativa de regresso aos ideais clássicos de simplicidade, clareza e beleza, típicos da antiguidade grega, como resposta à complexa racionalidade do contraponto renascentista. Sob o signo de Orfeu, esta inovação permite passar gradualmente duma simbólica do número a uma simbólica do sensível, que conduzirá a música para o caminho da teatralidade e da ópera. Doravante a evolução da história da música decorrerá da tensão dialética entre os conceitos aparentemente opostos de racionalidade e sensibilidade, entre amathesis e os afetos, o técnico e o lírico.
Se, no início do período Barroco, com o nascimento da ópera, a arte lírica passa a referir-se à arte do canto, sobretudo o bel canto de origem italiana, com o início do romantismo o território do lírico expande-se consideravelmente e passa a abarcar também toda a música instrumental que privilegie a dimensão melódica. O período romântico é por excelência o período lírico, no qual, sob o ideal da unidade das artes, a música se apropria dos valores poéticos até aqui circunscritos à própria poesia. Além da abundante produção do género poético como o lied, desenvolve-se na literatura para piano a pequena peça melódica de carácter poético, como a canção sem palavras, o noturno ou a balada, nas quais predomina a subjetividade, a expressão do eu e a emoção. O lied, com as suas raízes na canção popular, tal como foi desenvolvido por Schubert ou por Schumann, inaugura um tipo de lirismo mais sóbrio do qual está ausente o lado acrobático do virtuosismo vocal operático, que acabará por influenciar os géneros instrumentais. A partir do momento em que o lirismo invade a música instrumental o próprio sentido do conceito de lírico se desvia do seu sentido vocal, para ser usado como sinónimo de melódico e de poético, e, em algumas aceções pode referir-se também a qualidades como a facilidade e a espontaneidade, bem como uma tendência para a simplicidade, e para um modo de expressão subjetivo que procura na imediatez dos sentimentos um modo eficaz de comunicação artística. Em síntese, o líricopode ser conotado com a parte sensível da música. E por isso podemos, grosso modo, contrapô-lo ao racionalismo, à tendência para a complexidade e para o artifício. Aliás, é possível olhar para a história da música e para a evolução dos diferentes estilos como um movimento, sempre repetido, que vai do simples para o complexo. Ou seja, a génese de um novo estilo surge geralmente duma tentativa de simplificação e de depuração relativamente ao anterior, e essa passagem faz-se, em certa medida, através da revalorização do elemento lírico, seja no sentido melódico, emotivo, poético ou subjetivo.

É provável que os nomes de Ludwig Spohr (1784-1859), Max Bruch (1838-1920) ou Nino Rota(1911-1979), três dos compositores apresentados neste programa, não sejam conhecidos do público em geral. E de facto são consideradas figuras de segundo plano, e apesar de não terem trazido no âmbito da composição grandes mudanças à história da música, foram, todavia, músicos competentes e produziram obras de uma qualidade perfeitamente meritória, embora no geral o conjunto da sua obra seja irregular e desprovida de génio. Um traço visivelmente comum a estes três compositores é o seu inequívoco lirismo, a fertilidade da sua inspiração melódica. De resto, no nível formal e harmónico, foram, cada um na sua respetiva época, compositores de tendência conservadora, pouco dados a seguir as inovações que o seu tempo lhes ofereceu.
Além disso, foram músicos que se destacaram em outras áreas da atividade musical: Ludwig Spohr como reputado maestro, Max Bruch como professor de composição no Conservatório de Berlim, Nino Rota como um dos mais notáveis compositores para cinema, compôs a música para toda a filmografia de Fellini.
Com Franz Schubert (1797-1828) estamos no cume do lirismo. A sua inesgotável invenção melódica, associada a uma sensibilidade harmónica inédita, deu origem a uma coleção de cerca de seiscentas canções (lieder), bem como à criação de pequenas peças para piano de atmosfera lírica, as quais inauguram a nova era poética do romantismo.
Finalmente, Nuno Côrte-Real (n.1971) é um caso raro de lirismo na música contemporânea, não só pela busca da clareza e da simplicidade, mas também pela procura dum discurso que privilegia a emoção e pela sua proximidade com a poesia.
2 Momentos a Pessoa, com Pessoa, op.1, foi composta em 1995, ainda durante os anos escolares, com uma escrita hermética tipicamente académica, mas que deixa antever já alguns traços da abordagem emocional que o seu estilo posterior manifestará.

Afonso Miranda