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(sobre António Pinho vargas e Nuno Côrte-Real)
A modernidade é o transitório, o fugitivo, o contingente,
a metade da arte, cuja outra metade é o eterno e o imutável.
Baudelaire
Refere-se, grosso modo, a um corpus de obras do passado que partilham um conjunto de procedimentos e de regras comuns, e uma mesma ideia de obra de arte musical. Neste sentido é um saber que se transmite de geração em geração, sob o qual está implícito uma linearidade histórica, uma genealogia. E deste modo, o conceito de tradição aparece como o oposto de ruptura. Na verdade a evolução dos estilos musicais sempre se fez em diálogo com a tradição, através de um complexo sistema de transformação de influências em que cada artista retoma a tradição e simultaneamente, através da sua individualidade e das questões que o presente lhe coloca, instaura uma tradição. O exemplo de Bach é paradigmático. Apesar de, nos cem anos que se seguiram à sua morte, só ser conhecido por um pequeno círculo de músicos, o seu estilo foi retomado em todas as épocas, actualizado às mais diversas realidades sonoras. De Mozart e Beethoven, passando por Wagner até Bartók, é possível percorrer essa complexa genealogia formada por sedimentação de influências. No início do século XX, com o movimento modernista deu-se uma fragmentação da realidade musical numa pluralidade inaudita de estilos individuais, com a abertura a novos materiais como resposta à crise de um dos valores mais altos da tradição: o sistema tonal. A partir daqui começou a ter mais sentido falar de tradições no plural. Todavia, apesar da relação de tensão que manteve com a tradição, o modernismo não instaurou a ruptura, antes propôs novos valores artísticos que permitiram mudar o rumo da história. A verdadeira ruptura surgiu após a segunda guerra, com as estéticas radicais ligadas à escola de Darmstadt que, suspendendo a história procuram reconstruir a prática musical no seu todo através da invenção duma nova linguagem completamente desenraizada do passado. A experimentação e a busca pelo novo foram tão obsessivas que acabaram por destruir o próprio sentido da obra de arte musical. A herança do passado e a tradição, na sua pluralidade, tornaram-se interditos. A vanguarda, paradoxalmente institucionalizada, baseada nos seus princípios totalitários e utópicos criou a sua própria tradição excluindo todas as outras que saíssem dos limites estreitos da sua visão histórica.
Apesar da sua música ser necessariamente diferente, os dois compositores têm em comum um conjunto de convicções que revelam um mesmo sentido de abertura em relação à tradição e, como tal, um afastamento relativamente às poéticas de vanguarda. Compõem sem um sistema pré-definido, aceitando a força irracional que está implícita no acto poiético, sem a qual a dimensão transcendente da obra não pode existir. A eficácia da obra é avaliada em termos perceptivos, isto é, pela escuta e não pela análise ou por uma qualquer declaração de intenções. Recusam qualquer tipo de interdições e não excluem a priori nenhum tipo de material musical porque o que importa é o tipo de organização a que ele será sujeito, o tipo de expressividade e o discurso que o compositor procura. Cultivam um estilo impuro que, através de uma teia de contaminações retoma e actualiza o que de perene há na arte musical e simultaneamente lhes permite o ser si próprio. Procuram uma autenticidade da vivência musical, acreditando no poder do belo e na transcendência da obra. O que está em causa não é um regresso ao passado, mas a aceitação da história na sua pluralidade e diversidade, na qual todas as genealogias são legítimas. A História está sempre em aberto.
Afonso Miranda
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