textos de Afonso Miranda



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O Rapaz de Bronze

Ópera em um ato de Nuno Côrte-Real

Retomando o caminho esquecido da grande tradição, a obra de Nuno Côrte-Real abriu um espaço de possibilidades. Isto é mais notório se pensarmos na nossa época, dominada, em geral, por uma falta de orientação sintomática da crise que se abateu sobre a criação musical após os excessos das vanguardas. Apesar da saudável diversidade recém conquistada no domínio da composição, prevalece na nossa época uma certa tendência para os estilos impessoais, em que “cada um é o outro e nenhum é si-próprio”, em que se permanece preso a certos princípios e restrições tidos por absolutos, e em que uma determinada visão da Historia submete o artista; privando-o, por vezes, da liberdade criadora elementar.

Ora, pelo contrário, a História não deve representar para o artista um fardo esmagador que arrasta ao longo dos dias, mas como algo recebido incompleto, algo em aberto que lhe é dado a prosseguir. E portanto, não há soluções definitivas, não há critérios pré-constituidos. Há sim criação de possibilidades, relançamento de possíveis que eram impossíveis, e que sem essa criação permaneceriam inconcebíveis. A obra cria, ao mesmo tempo que a sua realidade, a sua possibilidade, e não há critério da arte fora desse alargamento do possível.

Assim, liberta de paradigmas e de pressupostos estéticos, a obra de Nuno Côrte-Real restitui à música a sua natureza sensível, instaurando um lugar de comunicação e emoção. A obra como fenómeno de ressonância na interioridade do ouvinte. A partir da segunda metade do século XX os aspectos construtivos e conceptuais são valorizados em detrimento da audição. De certa maneira, a análise substitui a escuta, o pensamento substitui a percepção. A emissão do som triunfa sobre a escuta. Adquirimos uma notável mestria na produção e organização do som, mas não sabemos como recebê-lo. A arte tornou-se coisa de elites. Côrte-Real tenta inverter esta tendência criando uma música que ensina a escuta, uma música correlato da escuta, da qual não podem estar ausentes os seus princípios humanos fundamentais: o canto (a melodia) e o ritmo. A sua música, enquanto organização do tempo, procura, assim, um sentido narrativo, no qual a relação dialéctica entre consonância e dissonância tende a privilegiar a primeira, enquanto a segunda toma uma função expressiva ou de caracterização dramática. Uma música unicamente dissonante seria como um mundo a preto e branco. Deste modo, assumindo uma relação aberta com o passado, a sua música cria um feixe de contaminações que são assimiladas e incorporadas no seu estilo, revelando uma atitude perante as inovações técnicas e estilísticas, encaradas como alargamento de possibilidades expressivas, e não como liquidação de valores declarados prescritos. Sobressai daqui uma concepção do modernismo como abertura para o múltiplo, em que vários estilos diferentes podem coexistir, legitimados unicamente pela coerência e pela intenção expressiva da obra.

Estes aspectos são bem evidentes na ópera O Rapaz de Bronze. Partindo de uma total submissão ao texto, o compositor serve-se de várias técnicas não com uma função estética, mas como forma de caracterização dramática e psicológica. A música funciona, assim, não só como reforço da palavra, uma espécie de ressonância do texto, como procura exprimir além da palavra. Elementos musicais recorrentes, sejam tímbricos, melódicos, rítmicos ou harmónicos, que aparecem associados aos personagens principais, asseguram, além duma engenhosa caracterização, a unidade dramática e formal da peça.

Afonso Miranda

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