textos de Afonso Miranda



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Breve Ensaio sobre a música de Nuno Côrte-Real

Não fala, nem escreve sobre a sua música. No entanto, as obras dizem-no, se compreendermos o estilo não só como técnica, mas como visão do mundo, espiritualidade. O estilo desvela a singularidade do seu modo de ser – compositor. Por outro lado, esse silêncio pode também ser revelador, numa época em que, por vezes, os compositores são mais conhecidos pelo que dizem do que pela música que fazem.

Até muito recentemente todas as suas partituras eram manuscritas, com aquele rigor paciente de artesão, a disciplina manual dos ofícios perenes. Este saber – fazer manual que os Gregos antigos chamavam Téchne, e do qual nasceu a palavra arte. Caligrafia clara, cuidada e precisa, tal como a música. Hieróglifos de um saber ancestral e enigmático. Mas, enfim, a rendição ao computador tornou-se inevitável, sobretudo pela tarefa morosa de copiar todas as partes instrumentais. Mas a música não mudou. Continua ligada a esse gesto da mão que completa o movimento interior do som, tornando-o exterior no instante inapreensível da criação. Música que se escreve com o corpo e nele se inscreve, convocando-o na escuta.

Tem sido muito interessante seguir o percurso de Nuno Corte-Real, um dos mais notáveis compositores da nova geração. Vejo na sua música uma interrogação sempre retomada em cada obra: “O que é para mim a música?”. Vejo também uma nostalgia, um desejo de voltar a casa. E penso, quão ilusória e inútil é, afinal, toda a nossa subtileza técnica, especulativa e criadora se antes a não suporta e anima este abraço recebido no intimo de nós mesmos. Nostalgia. Exercício de verdade interior, de liberdade. A sua música surge assim como uma necessidade de preencher o sentimento de uma falta, de uma ausência, pela reinvenção de um ofício quase perdido, que se quer de vocação, e que por um deslize de sentido se tornou pro-vocação.

Assim, retomando o caminho esquecido da grande tradição, a obra de Nuno Corte-Real abriu um espaço de possibilidades. E isto é mais notório se pensarmos na nossa época dominada, em geral por uma falta de orientação, sintomática da crise que se abateu sobra a criação musical após os excessos das vanguardas. E, apesar da saudável diversidade recém conquistada, prevalece na nossa época uma certa tendência para o impessoal, em que “cada um é o outro e nenhum é si-próprio”, em que se permanece preso acertos princípios e restrições tidos por absolutos, e em que uma certa visão da História submete o artista, privando-o da liberdade criadora elementar.

Ora, pelo contrário, a História não deve representar para o artista um fardo esmagador que arrasta ao longo dos dias, mas como algo recebido incompleto, algo em aberto que lhe é dado a prosseguir. E portanto, não há soluções definitivas, não há critérios pré-constituídos. Há sim criação de possibilidades, relançamento de possíveis que eram impossíveis, e que sem essa criação permaneceriam inconcebíveis. A obra cria, ao mesmo tempo que a sua realidade, a sua possibilidade, e não há arte nem critério da arte fora desse alargamento do possível.

Assim, liberta de paradigmas e de pressupostos estéticos, a sua obra restitui à musica a sua natureza sensível, instaurando um lugar de comunicação e emoção. A obra como fenómeno de ressonância na interioridade do ouvinte. A partir da segunda metade do século XX os aspectos construtivos e lógicos são valorizados em detrimento da audição. De certa maneira a análise substitui a escuta, o pensamento substitui o dado sensível. Ninguém se interessa pelo que as obras são (auditivamente), mas pelo que elas representam, pelo seu papel num processo histórico em progresso que se crê absoluto. A emissão de som triunfa sobre a escuta. Adquirimos uma notável mestria na produção e organização do som, mas não sabemos como recebê-lo. A arte tornou-se coisa de elites. Corte-Real tenta inverter esta tendência criando uma música que ensina a escuta, uma música correlato da escuta. Uma música que não precisa de palavras que a expliquem, porque o seu criador só tem uma maneira de reflectir sobra a criação: criar. Quando a obra é clara o pensamento abafa-a.

Convicto de que toda a interdição é uma violência, a sua música assume uma relação aberta com o passado, criando um feixe de contaminações que são assimiladas e incorporadas no seu próprio estilo, o qual resulta assim não de imposições estéticas, mas da sua própria visão e vivência da música. Aqui sobressai a sua concepção do modernismo como abertura para um múltiplo, em que vários estilos diferentes podem coexistir.

Afonso Miranda

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