textos de Afonso Miranda



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MÚSICA POPULAR VS. MÚSICA ERUDITA
(a propósito da música de Carrapatoso e Côrte-Real)

Desde sempre que os compositores se sentiram atraídos pela música popular, e foram beber à sua fonte, procurando nela saciar uma imensa nostalgia pela terra, pelo povo ou pela imagem idílica de uma idade dourada para sempre perdida. Para muitos a cultura popular traz em si um sentido ancestral, uma verdade primitiva, e escutá-la é como um regressar à voz maternal, ou a uma inocência perdida. Alguns procuraram nela a crua simplicidade, a genuinidade, a depuração de tudo o que não é essencial. Outros viram nela a sua identidade, o reflexo da sua alma, e nela escutaram a voz da fraternidade. Outros ainda projetaram com ela a sua fuga para terras exóticas e virgens, encontrando nos sons remotos a mesma presença humana, e uma riqueza musical de que a Europa não suspeitava. Podemos dizer que o fascínio provocado pela música popular levou à sua assimilação pelas formas eruditas e a influência dessas interseções acabou por ser um dos fatores determinantes para a evolução da música ocidental. Se, num determinado registo, é frequente ouvirmos a fórmula dicotómica que contrapõe a música tradicional ou popular à música erudita ou culta, é porque a primeira se refere a um conjunto de reportórios de tradição oral pertencentes à memória coletiva de um povo, enquanto a música erudita pressupõe a escrita como processo de criação individual e transmissão. Mas isto, não significa incompatibilidade ou oposição. Ambas evoluíram através do contato recíproco.

É sobretudo no século XIX, com a afirmação crescente das identidades nacionais, que se desenvolve o interesse pelas culturas populares. Acreditava-se que a cultura popular, bem como a língua, refletia a identidade e a alma dos povos. Nos países limítrofes da Europa inicia-se o movimento dos nacionalismos musicais, que procuram encontrar nas raízes da música popular uma forma de afirmação contra a supremacia da música alemã. Do cruzamento entre música popular e erudita o carácter da linguagem musical, que até aqui era homogéneo e universal, começa a fragmentar-se em dialetos nacionais. O caraterístico, o pitoresco e o exótico contaminam e refrescam as formas da tradição clássica vienense contribuindo para a sua renovação. Pense-se, por exemplo, em Chopin e na nostalgia polaca das suas Mazurkas, ou na música cigana de Lizst, ou nos Landler de Mahler e na música de feira que irrompe das suas sinfonias como memórias de infância irreprimíveis. Este movimento é levado mais longe no século XX quando o fascínio pela música popular, tornando-se mais pragmático e sistemático, ultrapassa os limites estreitos do nacionalismo. Os compositores procuram nas músicas primitivas e exóticas soluções para os problemas estéticos do seu tempo. Com o modernismo a arte derruba fronteiras políticas e geográficas, e torna-se global. O impacto que as músicas do Extremo Oriente tiveram em Debussy acabaria por transformar o curso da música europeia. Ou Bartók que a partir do estudo sistemático da música rústica de vários países forjou um dos estilos mais originais do modernismo. Ravel, Stravinsky… os exemplos multiplicam-se. Difícil seria encontrar um compositor da primeira metade do século XX cuja música não tenha ecos da música popular, seja rural ou urbana. Porque o modernismo é precisamente essa abertura ao plural e ao global, essa celebração explosiva da diversidade.
É neste contexto de pluralidade e abertura que se inscrevem Eurico Carrapatoso (n.1962) e Nuno Côrte-Real (n.1971) dois compositores da nova geração que melhor traduzem o afastamento das poéticas radicais e académicas das pós-vanguardas, e que assumem a música como um exercício de liberdade criativa e expressiva, que resulta da síntese de vários universos sonoros. Trata-se de reinventar a música dispondo de todo um vasto leque de materiais que a sua história nos legou. E à partida não há materiais mais ou menos legítimos, mais ou menos dignos. É o tipo de intenção, e de organização a que compositor sujeita o material em função da sua intenção expressiva que legitima e dignifica o material. Em ambos os compositores é possível verificar um interesse recorrente pela palavra e pela cultura portuguesa, bem como pela sua música tradicional, como é o caso das obras aqui apresentadas, inspiradas em melodias populares portuguesas. No entanto, deve-se salientar, que não se tratam de meras coleções de música tradicional. Os materiais tradicionais servem de ponto de partida, são como matéria-prima bruta, sujeita a um tratamento rigoroso através de técnicas e de uma construção formal típica da música erudita.

Carrapatoso representa um dos nomes mais importantes da criação atual em Portugal, um estatuto que se reveste de maior valor se pensarmos que foi conquistado por mérito próprio, fora dos círculos académicos e do partidarismo musical, graças à sageza e clareza da sua escrita, à subtileza da sua orquestração, e às qualidades poéticas e líricas da sua música que lograram conquistar o público. As suas origens transmontanas constituem um traço marcante na sua identidade pessoal e musical. A música popular frequentemente revisitada pelo compositor funciona como um exercício necessário de purificação da alma, um gesto involuntário de regresso às origens, um grito de nostalgia perante uma identidade em extinção. A sua vasta obra coral, com fortes implicações populares, constitui, neste campo, um património insubstituível para a compreensão da identidade musical portuguesa. Espelho da alma, a obra aqui em estreia absoluta, e Sete Epigramas a Francisco Lacerda, composta em 2000, são ambas constituídas por sete peças baseadas em melodias populares maioritariamente transmontanas e açorianas, às quais o compositor confere uma construção em arco ou em espelho.
Côrte-Real compôs o Novíssimo Cancioneiro, op.12, em 2001, num período de grande profusão criativa que coincide com o final da estadia do compositor na Holanda, após seis longos anos de estudo. Se num nível emocional a obra é ditada pela nostalgia, num nível mais técnico e musical é marcada por um desejo de rutura com os dogmas académicos e pela vontade de afirmação de uma linguagem musical livre. Constitui uma tomada de posição em favor de uma música organicamente humana, uma música cuja própria essência corporal assenta no canto e no ritmo. Construído a partir de melodias tradicionais portuguesas, o ciclo constituído por doze peças inclui também duas danças galegas, as Muiñeiras, e dois exercícios originais de inspiração popular, os Intermezzi instrumentais. A organização e construção formal do ciclo obedecem a princípios rigorosos. Cada uma das doze peças está escrita numa tonalidade diferente e dessa sequência o compositor faz derivar uma série melódica que vai gradualmente sendo introduzida ao longo do ciclo. A canção de embalar Nana nana, meu menino funciona como uma espécie de motivo condutor, sendo apresentado três vezes mas trabalhado de três maneiras distintas.

Afonso Miranda

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