textos de Afonso Miranda



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Genealogia do Lírico

(a propósito de Spohr, Bruch, Schubert, Côrte-Real e Rota)

O que significa a palavra lírico? O que queremos dizer quando afirmamos que um compositor é lírico? Desde logo fica por esclarecer se se trata de um adjetivo, de uma categoria estética ou de um conceito artístico. Indubitavelmente a palavra sugere uma pluralidade de sentidos que podem variar segundo os contextos, o tempo histórico a que se refere. Desde logo pode assumir uma aceção mais literal ou, pelo contrário, mais figurada. Se dizemos, por exemplo, que Rossini foi um compositor lírico, o sentido é literal uma vez que Rossini foi um compositor de ópera, sendo o lírico entendido aqui como a arte do bel canto. Mas se dizemos que Chopin é um compositor lírico o significado já não pode ser o mesmo, porque Chopin, como é sabido, só escreveu música para piano. Aqui lírico lê-se como um modo de expressão que privilegia a melodia como um veículo poético para a manifestação de sentimentos subjetivos. Por outro lado, pode-se dizer ainda que Wagner, que praticamente só compôs óperas, não é um compositor lírico. O lírico aparece aqui como o oposto de dramático, mas pode ler-se simultaneamente, como no exemplo de Chopin, como um sinónimo de melódico.
A palavra tem a sua origem etimológica na lira, o instrumento musical da antiguidade grega associado às figuras mitológicas de Apolo e Orfeu, e que servia para acompanhar um género de poesia cantada, que se caracterizava pela subjetividade e pela exposição emocional do eu: a poesia lírica. A partir da Poética de Aristóteles tornou-se comum a divisão da poesia em três modos distintos: a poesia épica, em que um narrador conta um história, a poesia dramática, que inclui todos os géneros teatrais, na qual são as personagens que falam, e a poesia lírica, na qual o poeta fala diretamente ao leitor ou ouvinte, representando diretamente a sua subjetividade. Note-se, de passagem, que esta divisão não impede a mistura dos vários modos numa mesma obra. Os sentidos que a palavra vai ganhando ao longo do tempo, com a sua expansão do território da poesia para o da música, mantêm uma ligação estreita às características definidoras da poesia lírica e ao imaginário mitológico de Orfeu, isto é, o canto e a exposição emocional do eu.
O elemento lírico irrompe na música como uma verdadeira revolução musical, por volta de 1600, com o advento da monodia, isto é, o canto solista com acompanhamento de acordes. E surge como uma tentativa de regresso aos ideais clássicos de simplicidade, clareza e beleza, típicos da antiguidade grega, como resposta à complexa racionalidade do contraponto renascentista. Sob o signo de Orfeu, esta inovação permite passar gradualmente duma simbólica do número a uma simbólica do sensível, que conduzirá a música para o caminho da teatralidade e da ópera. Doravante a evolução da história da música decorrerá da tensão dialética entre os conceitos aparentemente opostos de racionalidade e sensibilidade, entre amathesis e os afetos, o técnico e o lírico.
Se, no início do período Barroco, com o nascimento da ópera, a arte lírica passa a referir-se à arte do canto, sobretudo o bel canto de origem italiana, com o início do romantismo o território do lírico expande-se consideravelmente e passa a abarcar também toda a música instrumental que privilegie a dimensão melódica. O período romântico é por excelência o período lírico, no qual, sob o ideal da unidade das artes, a música se apropria dos valores poéticos até aqui circunscritos à própria poesia. Além da abundante produção do género poético como o lied, desenvolve-se na literatura para piano a pequena peça melódica de carácter poético, como a canção sem palavras, o noturno ou a balada, nas quais predomina a subjetividade, a expressão do eu e a emoção. O lied, com as suas raízes na canção popular, tal como foi desenvolvido por Schubert ou por Schumann, inaugura um tipo de lirismo mais sóbrio do qual está ausente o lado acrobático do virtuosismo vocal operático, que acabará por influenciar os géneros instrumentais. A partir do momento em que o lirismo invade a música instrumental o próprio sentido do conceito de lírico se desvia do seu sentido vocal, para ser usado como sinónimo de melódico e de poético, e, em algumas aceções pode referir-se também a qualidades como a facilidade e a espontaneidade, bem como uma tendência para a simplicidade, e para um modo de expressão subjetivo que procura na imediatez dos sentimentos um modo eficaz de comunicação artística. Em síntese, o líricopode ser conotado com a parte sensível da música. E por isso podemos, grosso modo, contrapô-lo ao racionalismo, à tendência para a complexidade e para o artifício. Aliás, é possível olhar para a história da música e para a evolução dos diferentes estilos como um movimento, sempre repetido, que vai do simples para o complexo. Ou seja, a génese de um novo estilo surge geralmente duma tentativa de simplificação e de depuração relativamente ao anterior, e essa passagem faz-se, em certa medida, através da revalorização do elemento lírico, seja no sentido melódico, emotivo, poético ou subjetivo.

É provável que os nomes de Ludwig Spohr (1784-1859), Max Bruch (1838-1920) ou Nino Rota(1911-1979), três dos compositores apresentados neste programa, não sejam conhecidos do público em geral. E de facto são consideradas figuras de segundo plano, e apesar de não terem trazido no âmbito da composição grandes mudanças à história da música, foram, todavia, músicos competentes e produziram obras de uma qualidade perfeitamente meritória, embora no geral o conjunto da sua obra seja irregular e desprovida de génio. Um traço visivelmente comum a estes três compositores é o seu inequívoco lirismo, a fertilidade da sua inspiração melódica. De resto, no nível formal e harmónico, foram, cada um na sua respetiva época, compositores de tendência conservadora, pouco dados a seguir as inovações que o seu tempo lhes ofereceu.
Além disso, foram músicos que se destacaram em outras áreas da atividade musical: Ludwig Spohr como reputado maestro, Max Bruch como professor de composição no Conservatório de Berlim, Nino Rota como um dos mais notáveis compositores para cinema, compôs a música para toda a filmografia de Fellini.
Com Franz Schubert (1797-1828) estamos no cume do lirismo. A sua inesgotável invenção melódica, associada a uma sensibilidade harmónica inédita, deu origem a uma coleção de cerca de seiscentas canções (lieder), bem como à criação de pequenas peças para piano de atmosfera lírica, as quais inauguram a nova era poética do romantismo.
Finalmente, Nuno Côrte-Real (n.1971) é um caso raro de lirismo na música contemporânea, não só pela busca da clareza e da simplicidade, mas também pela procura dum discurso que privilegia a emoção e pela sua proximidade com a poesia.
2 Momentos a Pessoa, com Pessoa, op.1, foi composta em 1995, ainda durante os anos escolares, com uma escrita hermética tipicamente académica, mas que deixa antever já alguns traços da abordagem emocional que o seu estilo posterior manifestará.

Afonso Miranda

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