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CONSIDERAÇÕES
(sobre Mozart, Schostakovich e Côrte-Real)
Um dos acontecimentos determinantes da vida de W.A. Mozart (1756-1791) foi a sua “fuga” de Salzburgo para Viena onde, a partir de 1781, se estabelece sob a nova condição de profissional independente. Dessa década que Mozart viveu em Viena até à sua morte, a entrada para a maçonaria, no final do ano de 1784, constitui um acontecimento decisivo que terá repercussões ao nível da sua vida social e espiritual, mas também implicações diretas na sua obra. Apesar de acreditar, como iluminista que era, que a nobreza do espírito tinha mais valor que a nobreza de sangue, a sua adesão não tem a ver diretamente com quaisquer preocupações políticas, nem com pretensões de mudar a estrutura social. Movido por um genuíno ideal de fraternidade humana, de respeito mútuo, e pela crença num saber e numa felicidade superiores, Mozart procura a amizade e o espírito de entreajuda, quer do ponto de vista humano, quer do profissional uma vez na sua inédita situação de independência não podia contar com a proteção de um patrono, e por isso necessitava de apoios e boas relações.Nesse tempo a maçonaria apesar de ser uma sociedade fechada na qual só era possível entrar por convite, ainda não possuia o grau de secretismo e clandestinidade que mais tarde, devido às tentativas dos governos para a sua extinção, viria a possuir. Na Viena do tempo de Mozart a maçonaria era constituída por espíritos iluminados da nobreza e da alta burguesia, assim como intelectuais, cientistas e artistas famosos, tais como Haydn. Além do mais Mozart concilia de maneira singular os princípios maçónicos com a sua fé católica.
A viva imaginação de Mozart deixou-se fascinar pelo aparato simbólico e pelos rituais iniciáticos, levando-o a operar uma tradução musical da simbologia maçónica. Esta tendência encontra o seu ponto alto na Flauta mágica, uma ópera esotérica e iniciática de clara inspiração maçónica. Além da música composta propositadamente para cerimónias da sua Loja, como a Música fúnebre Maçónica K.477 ou a Cantata Maçónica, K.623, existe ainda um conjunto de obras de circunstância compostas para amigos maçons. É o caso do Quinteto para clarinete em lá maior, K.581, composto para Anton Stadler, exímio clarinetista, irmão da maçonaria e amigo próximo de Mozart, para quem comporá ainda o notável Concerto para Clarinete, K.621. O clarinete era nessa altura um instrumento recente, ainda não completamente assimilado na orquestra clássica, e as obras que Mozart lhe dedicou enquanto instrumento solista conferiram-lhe um estatuto de prestígio que acabaram por assegurar a sua inclusão definitiva na paleta orquestral clássica. Além disso, o clarinete tinha um papel de destaque na música associada aos ritos maçónicos, assumindo-se aí como símbolo da fraternidade. Outro sentido esotérico aparece ligado ao número três, que possui uma forte significação na simbologia maçónica. As obras com implicações maçónicas são sempre compostas numa tonalidade com três alterações na armação de clave, isto é, Mi bemol que tem três bemóis, ou Lá Maior que tem três sustenidos e é a tonalidade deste Quinteto. Nesta obra, como noutras de inspiração semelhante e em que entra o clarinete, domina a atmosfera serena e feliz da amizade e da fraternidade, e a doçura do calor humano, e mostra bem a necessidade que Mozart tinha de se sentir apoiado, de ter amigos fieis e leais, razão que com certeza também terá contribuído para a sua adesão à maçonaria. Apesar do apoio recebido, inclusive financeiro, este facto não o impediu de conhecer nos seus derradeiros anos de vida a crueza da solidão artística e humana que tanto temia.
A conturbada carreira de Dimitri Schostakovitch (1906-1975) reflete todos os paradoxos do compositor soviético colocado entre os imperativos estéticos do regime e os ditames do seu próprio génio criador. Sob a política de terror estalinista Schostakovitch ocupa essa posição ambígua de compositor oficial do regime mas, simultaneamente, de um homem marcado, frequentemente censurado e obrigado a retratar-se. Em 1936 era já o mais destacado compositor soviético quando, a propósito da sua ópera Lady Macbeth do Distrito de Mtsenk, sai no jornal oficial do partido, o Pravda, uma severa crítica atribuída ao próprio Estaline, intitulada “Caos em vez de música”, que condenava os excessos modernistas da obra. A partir daqui dá-se uma fragmentação da sua personalidade artística, que passa a oscilar entre a máscara oficial expressa na arte mais pública, as sinfonias, e a busca íntima nos domínios da música de câmara, donde sobressai um Schostakovich críptico e secreto, recolhido na sua própria interioridade e na redescoberta do processo criativo. Após a crítica do Pravda o Quarteto de cordas torna-se o seu meio de expressão favorito, um género que por estar mais afastado das grandes massas possibilitava ao compositor uma menor submissão às normas estéticas e propagandísticas do realismo socialista e uma maior liberdade. Os seus Quartetos tornam-se obras de reflexão filosófica e de intensa espiritualidade, onde o compositor se confronta com as suas próprias contradições. Assim, as opções estilísticas de Schostakovich, o seu intenso dramatismo, o humor corrosivo e a ironia, os seus lúgubres êxtases líricos ou a meditação continua sobre o tema da morte constituem o resultado dessa dupla natureza em confronto, a síntese dos estímulos exteriores com a sua própria busca interior. Esta dualidade entre os aspetos exteriores e interiores aparece bem diferenciada nos dois ciclos maiores da sua produção: as 15 Sinfonias e os 15 Quartetos. Se as Sinfonias constituem um grandioso ciclo épico que evocam os principais acontecimentos históricos da URSS, os Quartetos, enquanto veículos de uma expressão de natureza mais íntima e confessional, aparecem repletos de narrativas labirínticas e imagens de desolação, fugas bizarras e marchas fúnebres, funcionando como um antídoto em relação às suas obrigações como músico do regime. Podemos assim dizer que a música de câmara constitui o seu principal legado espiritual, pela autenticidade humana epela transcendente profundidade musical.
O Quarteto de Cordas nº11, em fá menor, Op.122, terminado em 1966, tem uma forma pouco habitual de sete andamentos que se encadeiam sem interrupção. É como um poema sem palavras em sete estrofes, dominado por uma pungente simplicidade melódica e polifónica, um carácter desolado e noturno que culmina na elegia fúnebre do penúltimo andamento.
Nuno Côrte-Real (n.1971) tem-se afirmado como um dos mais notáveis compositores portugueses da nova geração. A sua obra abriu um espaço próprio no panorama nacional, um espaço de independência conquistado pela afirmação convicta dos valores musicais perenes, da qual resulta um estilo em que a originalidade não está aquém da música, num qualquer sistema compositivo pronto a usar, mas se constrói pela precisão e pela intenção do gesto expressivo, que se atualiza na própria musica, no ato da audição. Sobrepondo o valor da escuta aos valores conceptuais a música reconquista a sua natureza sensível, instaurando-se como lugar de comunicação e emoção. Enquanto organização do tempo a sua obra procura um sentido narrativo, no qual a relação dialética entre consonância e dissonância tende a privilegiar a primeira, enquanto a segunda toma uma função expressiva ou de caracterização dramática. Um dos traços mais marcantes da obra de Côrte-Real tem sido o recurso frequente a poetas portugueses, e a abordagem de temas que problematizam as questões humanas em geral e que refletem o envolvimento espiritual do compositor com o mundo.
Pranto Op.17, composta em 2002, originalmente para dois clarinetes baixo, é uma peça de circunstância criada para o amigo clarinetista Fausto Corneo, numa altura em que, tal como o compositor, terminava o seu curso no Conservatório de Roterdão, onde a peça viria a ser estreada. É uma obra intuitiva, de imaginação, sem intenções construtivas, um lamento a duas vozes onde, de certo modo, está presente a ideia de um adeus. A simplicidade e versatilidade da escrita permitiram a adaptação a novas instrumentações para cordas, ganhando assim novas nuances expressivas.
Afonso Miranda